
O disco, o single, a música gravada são a eternização de um momento que na verdade é a culminação de vários “momentos” combinados – a captura de uma nota executada muitas vezes é adicionada de outras capturas, efetuadas em outro tempo e até outro espaço, retrabalhada numa sala de mixagem, levada depois a uma sala de masterização. O trabalho de gravação de uma música consiste na planificação dessas várias camadas de tempo numa só, definitiva. Esculpir o tempo.
A apresentação ao vivo, por sua vez, tem um conceito praticamente oposto: é uma transiente temporal, é a celebração do efêmero, de um momento que invariavelmente vai ficar pra trás e não poderá ser repetido – dois shows de um mesmo artista, no mesmo lugar, com a mesma platéia, nunca serão iguais, porque o tempo ali experimentado é a junção de uma infinidade de particularidades que vão influenciar diretamente em sua percepção. Talvez por isso o conceito de “disco ao vivo” seja tão pouco interessante – o “show gravado” está mais para uma lembrança, um souvenir (mesmo que de algo que não se tenha presenciado), do que para uma idéia de obra.
Assim sendo, uma lista de “melhores shows” é naturalmente uma lista mergulhada na maior das subjetividades (por mais que tentemos organizá-la da forma mais cognitiva), porque se no momento a experiência já está atrelada a tantas variáveis, a posterior avaliação se baseia estritamente na memória e processos afetivos e intuitivos.
Salvaguardas feitas, estes são portanto os melhores – enquanto mais significativos, mais emocionantes, mais divertidos, mais prazerosos, mais um monte de outros parâmetros concebíveis – shows que assisti em 2015:
.Iceage

Terceiro (e mais apoteótico) show desta senhora que vi em uma semana, comemorando e tocando na íntegra um disco seminal na cidade que, palavras da própria, o melhor acolheu. Acredito que esse movimento de mergulhar de cabeça num disco específico (como tem acontecido nessas turnês de aniversário) faz o artista rejuvenescer, de modo que nesses shows vi uma Patti Smith (e banda) muito mais radiante do que há 10 anos.

Depois do show, minha vontade era voltar umas horas para o momento em que cruzei com a Carrie Brownstein e tascar-lhe um abraço apertado de gratidão. Se é que eu tinha dúvidas, naquele palco cristalizou-se o quanto ela e a banda flutuam muito acima de qualquer conceito besta de “banda de meninas” que os anos 90 tenham tentado nos empurrar. Alias, antes disso até: o Sleater-Kinney faz uma banda como as Runnaways parecer as paquitas.




Um show dos Swans é como um show do Neil Young e Crazy Horse sem a parte das canções. Foram quase 3 horas de um massacre de amplificadores, Michael Gira como um maestro regendo o caos, sons inomináveis ecoando pela sala – e o fato de ter ocorrido em um teatro com ótima acústica, esse ambiente controlado parece ter só contribuído com a propagação do descontrole. Taí algo que dá pra se chamar de “transgressor” em 2015/16.

Não sei quando essa transição se concretizou, mas este show foi um testamento do Caribou não mais como “projeto de Dan Snaith” mas como banda completa e consagrada – e uma banda maiúscula, daquelas que a unidade sonora é latente; curiosamente a identidade visual parece querer reforçar essa idéia, com o desenho de palco colocando os integrantes em proximidade, todos vestidos de branco, quase um culto, reforçado aqui pela participação de Owen Pallett. Em vários momentos pensei na banda e no clima como o de um LCD Soundsystem lisérgico – e portanto ainda mais interessante.


Sentado numa dessas casas de espetáculo da Marginal Pinheiros, esperando o show começar rodeado pela família tradicional paulistana, temi por um clima celebratório, uma daquelas comemorações que só visam martelar o prego da “genialidade”, um show do Roberto Carlos enfim. Mesmo jogando pra torcida várias vezes, felizmente esse encontro passou longe disso, inclusive no repertório escolhido – e um dos melhores momentos ter sido Gil em “Não Tenho Medo da Morte”, música que eu nem conhecia, é prova de que estávamos (nós e eles) imunes ao raio canonizador. E como a voz de Caetano e o violão de Gil só melhoram com o tempo, e como é bom ver boa parte do que de relevante se fez na música, na arte e no comportamento brasileiro nos últimos 50 anos refletida ali naqueles dois sorrisos. Inesquecível.

Ao fim do show, saindo do palco abraçando todos e meio em prantos, Mark Gardener falou que aquele fora “o melhor dia de sua vida”. Alguns podem ter achado que era demagogia, crowd-pleasing ou sei lá o que, mas o que sei é que na semana anterior, quando os vi em Barcelona, isso não aconteceu. Não era teatro – algo mágico de fato se deu ali.